Going North – Notas de programa em português

  1. AhojAhoj (2011) de Terri Hron    terrihron.com

AhojAhoj é a primeira peça do ciclo Sharp Splinter, uma série de obras sobre família, memória e separação. Durante a Guerra Fria, meus pais trocaram um número enorme de cartas, fitas cassete e filmes com sua família, que havia ficado atrás da cortina de ferro, na Tchecoslováquia. Em 2009, eu recolhi todo esse material e comecei a organizar esse tesouro. Surpreendia-me tanto com suas vozes nas fitas cassete, que era como se fossem uma dobra no tempo através da memória. Algumas dessas vozes estão presentes em AhojAhoj. Quase todos os excertos que escolhi são de “olá” e “tchau” (ambos são Ahoj! em checo), como uma passagem mais longa em que minha avó – para minha surpresa, em inglês – resume de maneira precisa: “quando a gente escuta as vozes de vocês, tão próximos, a gente imagina que vocês estão aqui no quarto ao lado”. A maioria dessas pessoas já não está mais conosco.

Essa peça foi escrita para Luciane Cardassi. Eu me inspirei em Luciane e em seu grande talento para sincronização quando escolhi a eletrônica fixa para esse trabalho. Além das vozes e do piano, os demais sons da peça são provenientes daqueles de um aparelho de fita cassete. São aqueles sons inseparáveis da experiência de fazer e escutar fitas cassete das décadas de 1960 a 1980.

  1. Dois Aforismos com Interlúdio (2010) de Jorge Villavicencio Grossmann shadowofthevoices.com

A poesia de Vicente Huidobro tem tido um impacto no meu trabalho, não apenas por servir de texto para duas das minhas peças vocais, mas também pela sua qualidade aforística. Huidobro acreditava que a poesia deveria ser nova e independente do mundo ao seu redor e que, de certa forma, deveria criar sua própria realidade separada de qualquer outra identidade. O uso de uma sintaxe particular é também uma das características de sua poesia, a qual eu tento reproduzir em Dois Aforismos com Interlúdio. Os aforismos exibem gestos musicais fugazes, em contraste com os sons sustentados do interlúdio. A reformulação do material do primeiro aforismo no segundo aforismo sustenta a estrutura em três partes dessa breve composição. Essa estrutura secional é, no entanto, obscurecida por sua estase geral.

  1. Wonder (2012) de Emilie LeBel    emilielebel.ca

Em 2008 eu conheci a pianista Luciane Cardassi durante uma residência artística no Banff Centre. No ano seguinte embarcamos em nossa primeira colaboração juntas. Baseado em uma seleção de poemas da canadense Sue Sinclair, on faith, work, leisure and sleep foi um projeto através do qual desenvolvemos um ciclo de peças para piano solo em várias configurações, incluindo texto, eletrônica e vídeo. Wonder é a terceira peça desse ciclo e o piano, aqui, explora ressonância e espaço, juntamente com o texto na voz da pianista e os sons eletroacústicos. Mais de 10 anos depois de nosso primeiro encontro, a amizade de Luciane e seu espírito colaborativo continuam sendo uma grande e estimada influência na minha vida artística.

  1. Berimbau (2019) de Alexandre Espinheira    alespinheira.wordpress.com

Essa peça traz para a sala de concerto um instrumento afro-brasileiro – o Berimbau –, que constitui a alma da capoeira, um ícone cultural brasileiro, que é – ao mesmo tempo – jogo, dança e arte marcial. Berimbau foi composta em colaboração com a pianista Luciane Cardassi. O compositor Alexandre Espinheira nasceu e vive em Salvador, Bahia, e é professor de Composição na Universidade Federal da Bahia. Incorporar aspectos da cultura baiana nas suas composições tem sido uma parte essencial de sua pesquisa, tanto artística quanto acadêmica, há muitos anos. A pianista, em contrapartida, não é da mesma região do país, mas foi, por dois anos, Professora Visitante na mesma universidade. Essa colaboração nasceu da curiosidade da pianista pela cultura baiana somada ao investimento contínuo do compositor nesse contexto cultural. Essa peça, assim, busca trazer para perto essas duas tradições: a música erudita contemporânea e a cultura da Bahia. O instrumento berimbau consiste numa corda de aço única estendida num arco de madeira e uma cabaça como caixa de ressonância. Apesar de aparentemente simples, pela sua associação com a Capoeira, está altamente impregnado de informação cultural. O piano, não menos carregado de informação cultural e dotado de mecanismos sofisticados, consiste de múltiplas cordas estendidas dentro de uma grande caixa de ressonância. Por essas semelhanças, nessa obra, o piano é encarado como um super-berimbau. Essa peça procura expandir as possibilidades criativas do piano trazendo os sons do berimbau e seu contexto. Para isso, o compositor fez uso de técnicas estendidas em combinação com sons eletroacústicos.

  1. Estudo de um piano (2008) de Chantale Laplante    chantalelaplante.ca

Estudo de um piano é como uma conversa em câmera lenta entre sons selvagens e sons domesticados. Enraizado em um processo exploratório, o piano gradualmente se transforma em um espaço com paredes flexíveis onde eu me movo constantemente entre memória (meu conhecimento prévio sobre o piano) e a necessidade de perder parte dessa memória para que novos significados surjam. Nessa produção, o método de trabalho foi totalmente focado nas sensações de escuta produzidas pela ressonância dos sons em meu corpo, com as cordas preparadas, tornando o arranhar, o esfregar e o pinçar das cordas uma extensão física de mim. A performance final da peça agrega sons ao vivo e pré-gravados, resultando em uma trança intricada de sonoridades, na qual uma série de gestos emergem e desaparecem, flutuando nessa atmosfera.

Sou muito grata a Luciane por ter encomendado essa obra, pela sua profunda compreensão de minha música e por sua interpretação meticulosa.

Obra realizada com apoio financeiro do Conselho de Artes do Canadá e do Banff Centre for Arts and Creativity.

  1. for will robbins (2010) de Darren Miller    darrenmiller.ca

Essa peça é para piano e sons pré-gravados (tape). Will Robbins, que dá nome a essa peça, é um grande amigo, de Saskatoon, Saskatchewan (Território Treaty 6). Will me ajudou enormemente durante uma crise pessoal em 2005-2006, quando dividíamos uma pequena casa com vários colegas. Durante esse período, eu escutava Will ensaiando com sua banda, Pearson, no andar de baixo da casa. Nesses meses particularmente difíceis, Pearson estava trabalhando em uma canção que foi eventualmente incluída em seu álbum de estreia. Os solos de guitarra da introdução e os interlúdios da canção Isto não é uma carta nem um cartão-postal ainda me remetem àquele período e ao grande apoio que recebi de Will.  Pareceu-me então apropriado incluir um sample do áudio desses trechos em uma peça composta durante tempos também tumultuosos durante o verão e outono de 2010. Nessa época, eu tive a felicidade de receber o apoio de outra grande amiga, Luciane Cardassi, para quem essa obra foi composta. Além disso, Luciane e eu nos conhecemos durante uma residência artística no Banff Centre for Arts and Creativity em 2009, quando colaboramos em uma performance de …sofferte onde serene… de Luigi Nono, uma obra também para piano e tape. Hoje, uma década depois, Luciane continua apoiando meu trabalho, com a inclusão dessa peça em seu álbum, e Will e eu também continuamos amigos. Mais que isso, depois de ter terminado meus estudos e retornado a Saskatoon, eu e Will acompanhamos agora nossos filhos também se tornarem grandes amigos.

  1. Converse (2019) de Lia Sfoggia, Guilherme Bertissolo e Luciane Cardassi  liasfoggia.wordpress.com     guilhermebertissolo.com

Converse é uma obra interartística cujo processo de criação envolveu três artistas de diferentes backgrounds. Uma performer – Lia Sfoggia –, que atua também nas artes da fotografia e vídeo(dança); um compositor – Guilherme Bertissolo –, que atua no desenvolvimento de estratégias de processamento de eletrônica e vídeo em tempo real; e uma pianista – Luciane Cardassi –, que possui vasta experiência em processos colaborativos e multimídia. A colaboração teve contexto na pesquisa de doutoramento de Sfoggia (2019), que enfocou processos criativos em dança a partir de uma vivência de campo no âmbito da complexa rede de saberes da Capoeira Regional, especialmente no que tange à dimensão de movimento. Em Converse, o processo criativo teve como ímpeto o conceito de Estado de Prontidão, que se refere à necessidade de o capoeirista manter-se alerta e disponível e a como esse comportamento influencia o modo de ele se mover. A obra abraçou esse conceito tanto na sua concepção, desenvolvimento, até as performances e desdobramentos, como nessa gravação, que apresenta apenas um recorte do trabalho. Continuando em estado de prontidão, os colaboradores, que compartilham a autoria de Converse, independentemente de sua versão, colocam-se abertos a novas experiências dentro dessa roda criativa, cujo próximo desdobramento será a realização de uma videodança a partir dessa gravação.

  1. The Boat Sings (2012) de Fernando Mattos   wikipedia.org/wiki/Fernando_Mattos

Meu amigo Fernando Mattos foi o primeiro compositor com quem colaborei. Isso foi lá em 1996/97, quando éramos estudantes de Pós-Graduação na UFRGS, em Porto Alegre. A peça resultante dessa colaboração me revelou sua paixão por poesia, por experimentação, por trabalhar junto. Depois de várias colaborações, e muitos anos de amizade, lembro-me bem da reação de Fernando quando eu lhe contei sobre uma expressão que ouvira de uma amiga remadora profissional: quando os remadores estão todos em sincronia, eles dizem que “o barco canta”. Fernando abriu aquele sorriso maroto, que era só dele. The Boat Singschegou em pdf no meu e-mail anos depois, em um fim de ano, de presente. Uma peça comovente, de grande profundidade, energia, fluidez e generosidade, como um retrato de seu criador. Fernando foi uma pessoa incrivelmente inteligente, generosa, de vasto conhecimento em áreas diversas, um professor que deixou gerações de órfãos com sua partida prematura. Um performer que tocava violões de diferentes épocas e estilos, Fernando deixou horas de improvisações gravadas. Foi com uma dessas improvisações que criei essa versão de The Boat Sings, enovelando sua improvisação com a minha, em uma homenagem a esse grande amigo-compositor-performer-ser humano. Reconheço aqui a expertise, sensibilidade e coragem de Amandine Pras por ter embarcado nessa criação comigo. Sua técnica e sabedoria tornaram possível esse encontro através da música. De minha parte, só posso sorrir quando ouço essa faixa – um sorriso de gratidão por ter tido essa alma tão generosa como amigo e por ter tido esse amigo me mostrando o caminho de colaborações com compositores.